17/01/2011

Eu sei, mas não devia


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. 

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Marina Colasanti


Extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996

9 comentários:

  1. Olá, Arte e Café!
    Adorei, valeu!
    Bjs!
    Rike.

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  2. Um texto maravilhoso! Pura verdade, aliás esse é o nosso mal, a gente se acostuma e se adapta e não procura mais melhorar o que está precisando de reforma. Assim nossa casa e nossa vida vai ficando cada dia mais destruída e a gente nem percebe quando ela desmorona.
    Beijos
    telma

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  3. ola minha rica flor Alba
    é mesmo as vezes naum sendo facil
    deondo maguando a gente se acustuma sim a muitas coisas mesmo naum devendo ser assim. tem gente q se acostuma da dor, outros se acostumam com a falsidade com a falta de amor... afinal o ato de se acostumar é um modo covarde de deixar quieto akilo q nos machuca

    perfeita obra minha rica
    hahaha agora tu vai ter q ti acostumar
    ovo permanecer por aki kkkkkkk
    sem data de partida kkkkkkk

    bjim minha rica

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  4. Anônimo18:26

    Olá queridíssima amiga Alba !!

    Maravilhoso e emocionante este texto, pude até me ver em várias situações, acostumada com tudo que acontece, tentando me preservar das dores... e foi tão boa esta leitura, pois nunca é tarde para nos darmos conta de que desta maneira estaremos nos privando de viver !!
    Vamos perdendo o brilho nos olhos, engavetando os sonhos, deixando de perceber as belas sutilezas da Vida !!
    Lindo demais !! Adorei !!
    Um super beijo marcial e que sua semana seja maravilhosa !!

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  5. Sabe que toda vez, que vejo o nome de seu site (arte e café) acabo até sem querer me lembrando institivamente de livros.
    Aí, caberia também uma sentença,"nos acostumamos a assistir televisão, ou a ver um filme baseado em um livro, a le-lo."
    Falo isto por que realmente a vida moderna nos conduz a uma correria frenética, aí em vez de lermos acabamos fazendo o mais fácil, que é assistir a um filme baseado na obra de outrém.
    Quando eu era novo, lia bem mais livros de agora, se bem que não eram lá grandes obras, mas não me esqueço nunca, de uma série chamada "vaga-lume", onde li alguns títulos, que até hoje me recordo: o menino de asas, cabra das rocas, o assasinato no 5 estrelas,a ilha perdida,além de outros livros um pouco mais "adultos" como : a montanha dos homens formiga" que trazia o retrato triste de serra pelada.
    Bons tempos aqueles, mas sinto-me feliz, por saber que pessoas como vc ainda nos trazem alguns pedaços desta maravilhosa arte, obrigado!
    Felicidades,paz e sucesso!!!!

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  6. Alba,
    lindo e rico texto de Marina Colasanti.
    Sim as vezes é mais fácil nos acostumar com o que é mais fácil, e assim tornar nossas vidas automáticas!.
    Como diz o titulo, a gente sabe, mas não devia...

    bjus

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  7. Muito profundo esse texto,belas verdades,existe uma grande diferença no simples ato de ler um bom livro ou assistir um filme,o filme deixa sua imaginação acomodada e o livro é como uma viagem cada pessoa imagina o personagem,cenário e tudo mais de uma maneira bem diferente uma da outra,adoro ler livros,apesar da tecnologia.
    Seu post me fez lembrar de uma coisa que muitos blogueiros não sabem,desenhar,sim faz algum tempo que não desenho mais que eu até tinha esquecido que eu sei desenhar muito bem a mão livre,só tenho a agradecer por fazer eu acordar e continuar com meus desenhos,desenhar é como uma terapia!!!
    valeuuu...
    Bjsss...

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  8. Triste realidade...
    Verdade.
    Esse texto da Marina serve para nos alertar que precisamos acender a luz amarela que há dentro de cada um de nós...
    Valeu minha querida Alba.
    Um beijo.

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  9. Olha eu atrasada de novo!
    Querida, utilizo muito este texto em meus trabalhos com pessoas, quando tenho que quebrar paradigmas da acomodação.... e sempre dá muito certo!
    Adorei relembrar....
    Beijo no coração

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