12/05/2010

Para não esquecer a história

Uma viagem num trem de luxo para conhecer museus na África do Sul mostra o quanto a nação mais desenvolvida do continente luta para aceitar o peso do seu passado.
Na semana passada, utilizei um meio de locomoção antiquado, o trem. O Shosholoza Meyl Premier Classe, que, pela primeira vez desde a minha infância, deixou-me entusiasmado com o transporte ferroviário. Sentei-me no sofá-cama de um compartimento privado, com ar condicionado, cabine, roupão, espelho, mesa e tomada elétrica. No trem havia um vagão-restaurante, as mesas com toalhas brancas, talheres de prata e taças de vinho.
Ao levantar a veneziana de aço, observei a sujeira urbana da Park Station de Johannesburgo, os apartamentos de Newtom, estações de metrô como Braamfontein, onde os negros esperavam os trens metropolitanos que hoje contrastam brutalmente com o tratamento mimado recebido pelos turistas.
Passamos por subúrbios e townships (favelas), ruas de cidades, por áreas verdes e outras com pilhas de material de mineração. No percurso, um depósito de ferro-velho com uma montanha de lixo, em seguida uma casa cor-de-rosa emoldurada com um perfeito arco-íris. Deixamos a cidade e logo depois já estávamos na savana sul-africana, contemplando a paisagem brilhando na luz, antes do anoitecer. Tudo isso me provocou um novo olhar sobre a África do Sul.
Desembarquei na estação ferroviária de Kimberley com a sensação de ter voltado no tempo. Visitei a mina De Beers que tornou Kimberley a maior produtora de diamantes do mundo e foi a precursora da revolução industrial do país. A mina fechou em 1914 e hoje é uma atração turística conhecida como The Big Hole (O Grande Buraco). Ali você pode chegar a uma plataforma para vê-lo sobre uma cratera de 214 metros de profundidade com um perímetro de 1,6 quilômetro.
Cenário. Mas o mais tocante é a antiga cidade minerária ao lado, que foi preservada, uma combinação da cidade original e edifícios que são uma réplica da época da corrida do ouro, quando milhares de garimpeiros afluíram em massa para o local com suas pás e picaretas, desesperados. Isso está vividamente detalhado ali, e a sensação é de uma cidade fantasma do Velho Oeste, ou de um parque temático cenário do filme Westworld, de Michael Crichton.

Lá está o ''saloon'' com as portas giratórias, copos de cerveja nas mesas, manequins fantasmagóricos atrás do bar, partituras de música sobre o piano e uma trilha sonora com músicas como Knees Up Mother Brown e It´ s a long way to Tipperary. Há tavernas ainda servindo, enfeitadas com móveis de madeira antigos, recortes de jornais vitorianos e fotografias emolduradas nas paredes de esportistas com bigodes de pontas viradas.
Dei uma volta pela Academia de Box do magnata Barney Barnato, onde suas cartas escritas à mão, móveis e objetos, sobrevivem.
Na cidade ainda havia velhos bancos e uma igreja, uma loja repleta de máquinas de escrever da época e uma funerária com uma variedade de caixões. Entrei nos consultórios do dentista e do médico, repletos de instrumentos, vidros de remédios e uma urna de vidro contendo um esqueleto humano.
Todos esses lugares dão a sensação de que os seus ocupantes acabaram de sair por um instante. Eles povoaram a minha mente e senti a alma desse lugar de um século atrás tão próxima como se fosse ontem. O passado pode ser tocado e imaginado; qualquer pessoa pode ser um viajante no tempo, basta querer.
Mas nem todos têm tempo, dinheiro ou inclinação para isso. Mais tarde, em Pretória, vi-me virtualmente sozinho no imenso monumento de granito de Voortrekker e um museu onde é relatada a história dos africâners. O objetivo é colocar o apartheid no contexto da guerra entre ingleses e bôeres e proteger a nacionalidade africâner. Aqui se faz mais menção à campanha de bombardeios do Congresso Nacional Africano, e suas vítimas civis, do que encontramos nos comentários que predominam hoje.
Fantasmas. O Museu de História Cultural Nacional e o Museu de História Natural do Transvaal foram igualmente abandonados, exceto para festas escolares. Achei particularmente evocativo passear pelo Museu Kruger, ex-residência do presidente Paul Kruger, tendo só os móveis e os fantasmas por companhia.
Como as antigas casas da família Brontë e de Charles Darwin na Inglaterra, a casa carrega os traços daqueles viveram ali. Estão expostas as caixas de costura da senhora Kruger, o guarda-roupa de mogno do casal e a louça de cozinha de porcelana esmaltada, como também o telefone de Kruger, instalado em 1891, e a mesa onde ele se reuniu com Cecil John Rhodes, Henry Morton Stanley e Mark Twain.
Ali estão documentos e lembranças, meticulosamente cuidados, da viagem de Kruger à Europa, incluindo uma caricatura que o mostra como um touro investindo contra o leão inglês. No jardim atrás da casa há um vagão de trem, com a elegância das cabines de primeira classe do Titanic, que dá para uma toalete de madeira toda envernizada.
Ao lado está a ''ultima mensagem ao povo'', de Kruger, a partir do seu exílio na Suíça em 1904. Num trecho da mensagem ele diz: ''Não esqueçam esse grave alerta que repousa nas palavras ''dividir e governar''; nunca permitam que elas sejam aplicadas à nação sul-africana. Só então nosso povo e nossa língua perdurarão e prosperarão''.
História branca e história negra. À noite, no teatro Nacional, assisti à estreia de Kalushi: a História de Solomon Mahlangu, mártir enforcado pelo regime do Apartheid em 1977 quando tinha 23 anos. Suas últimas palavras teriam sido estas: ''Meu sangue irá nutrir a árvore que dará os frutos da liberdade. Diga a meu povo que eu o amo. Ele tem que continuar lutando''.
A peça faz uma referência direta ao recente banimento das canções revolucionárias do CNA (Congresso Nacional Africano). O autor e diretor Aubrey Sekhabi viajou pelo país inteiro para selecionar atores para o papel de Mahlangu, mas ficou chocado ao perceber que poucas pessoas tinham ouvido falar dele.
No programa, ele observa: ''Ficou imediatamente claro para mim o quão apática a nossa juventude está, particularmente em relação a temas que dizem respeito à nossa história, nossos ícones, heróis e lendas. Um jovem chegou mesmo a confessar ter apenas lido alguma coisa no Google uma noite antes, enquanto outro respondeu com uma notável confiança que sabia quem foi Solomon Mahlangu: ''Sim, eu o conheço. Ele canta gospels''.
As lembranças lutam entre si para sobreviver na consciência coletiva. Este ano os 20 anos de libertação de Nelson Mandela e o 50º aniversário do massacre de Sharpeville foram lembrados. Dia 27 de abril é o Dia da Liberdade, em que é celebrada a primeira eleição democrática e multirracial de 1994.
Mas o vice-presidente Kgalema Motlanthe observou na semana passada ter ficado assombrado com o ''silêncio ensurdecedor'' em torno do centenário iminente da União da África do Sul, precursora da república moderna. Algumas pessoas não acreditam na sua história, disse ele, enquanto que outras prefeririam esquecê-la. Motlanthe disse que os sul-africanos precisam ser donos da sua história para conseguir avançar.
Lembrei-me da última mensagem de Paul Kruger, em que ele disse: ''Aquele que deseja criar um futuro, não se atreva a negligenciar o passado. Que busque, assim, tudo o que é bom e belo no passado, transforme no seu ideal, e lute para realizar esse ideal no futuro''.

11 de maio de 2010 | 0h 00
Artigo, DAVID SMITH - O Estado de S.Paulo

TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
THE GUARDIAN

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